O QUE
PENSO SOBRE A REFORMA DAS POLÍCIAS

Gostaria de comentar algo sobre as polícias e
suas reformas. Tenho sido muito demandado sobre isso e meus textos e
vídeos, produzidos em jornadas por várias partes do país, correm a internet.
Fui um dos primeiros a “peitar” o tema, ainda nos preparativos da Conferência
Nacional de Segurança Pública. É claro que sofri as consequências e fui
atropelado, sem dó, pela jamanta do corporativismo. Foi um de meus períodos
mais sofridos e solitários, como Secretário Nacional de Segurança Pública.
Exceto por algum tímido apoio de uma ou outra entidade representativa, e de
três ou quatro queridos amigos intelectuais, fui uma voz clamando no deserto.
Possivelmente por erros estratégicos meus: me adiantei muito, não consegui
adesão de apoiadores importantes (por falta de tempo para articulá-los), não
consegui explicar com suficiente didática e fui logo rotulado por gente
paralisada em seus velhos paradigmas, tive um raro súbito acesso de otimismo e
avaliei mal a conjuntura, com seus cruzados conservadores…
Mas não me arrependo. A semente, que já vinha sendo
plantada antes de mim, inclusive por excelentes policiais, regada a tantas
lágrimas e noites insones, começa agora a crescer. Vai dar frutos? Dependerá de
nossa maturidade, de nossa capacidade de superarmos embates figadais e
personalísticos e nos engajarmos na discussão racional de idéias, de nosso
empenho, criatividade e persuasividade para buscarmos aliados.
O que penso hoje? O mesmo que pensava à época.
Afinal, mal quatro anos se passaram. Aqui, uma breve síntese (muitos poderão
estranhar, pois se trata de uma visão muito autônoma, em que pese eu poder
apoiar outras propostas ou parte de outras propostas):
Para o sistema, em geral
a) Multiplicidade de polícias especializadas, nos
moldes do primeiro mundo democrático, todas de ciclo completo. Não sou e nem
nunca fui a favor de unificação de polícias, ideia que considero bem
intencionada mas de corte autoritário e muito perigoso. Polícia única não
possibilita a inter-vigilância institucional, fundamental para a democracia e a
cidadania. Logo se torna monopólio de informações e manipulações políticas. Nas
democracias avançadas há muitas polícias para fins diversos, que não se
entrechocam;
b) Carreira única e profissional para todas as
instituições, COM BASE NA MERITOCRACIA (atenção: evitar a tentação
empobrecedora de que a progressão se faça apenas por tempo de serviço, sem
exigências qualificatórias acadêmicas, concursamentos internos, práticas, ficha
funcional etc);
c) Possibilidade de organização de polícias em
municípios maiores e mais bem estruturados, para cuidarem de delitos básicos
ocorridos nas municipalidades (ex: questões posturais, licenciamentos,
contravenções, desafogando as instituições maiores e de âmbito estadual, de
parte de suas atribuições). Sob rigorosa normatização e fiscalização, para
evitar que se tornem Guardas Pretorianas de maus prefeitos;
d) Independência e tratamento digno aos bombeiros,
reconhecendo suas autonomias, como não policiais, interfaceados com a segurança
pública mas fundamentalmente relacionados à defesa civil;
e) Reforço da autonomia das ouvidorias de polícia;
f) Vinculação orçamentária, como na saúde e na
educação, para evitar que a segurança pública dependa da boa vontade, da
benevolência do “governante da hora”;
g) Participação obrigatória do Governo Federal na
melhoria dos padrões salariais das polícias dos entes federados (segurança
pública, ao contrário das afirmações que nos levaram a mais de 50.000
homicídios por ano, não é “coisa dos estados”;
Para as Polícias Militares
a) Amplo e democrático direito à sindicalização,
como em qualquer país decente do mundo, independentemente de ostentarem ou não
estéticas militares. São policiais e não membros das forças armadas. Governos
estúpidos e viciados na lógica ditatorial negam isso, tratando as reivindicações
legítimas dos policiais como “casos de polícia”. Repressão a movimentos
sociais, mesmo quando constituídos de policiais, não passa de ignorância
governamental e desconhecimento das dinâmicas da história;
b) Revisão modernizante e democratizante dos
famigerados “regulamentos disciplinares”, transformando-os em Códigos de Ética,
à luz da razão, da legalidade, da moralidade, da impessoalidade e da prestação
de serviços à cidadania;
“Nomeação de comandos fundada em critérios técnicos
e de progressão de carreira, superando eventuais subjetividades personalísticas
e interesses de caráter político”
c) Eliminação das penas “internas” de prisão e
substituição por mecanismos contemporâneos e legalistas (sem paradoxos) de
sanção;
d) Manutenção dos princípios da hierarquia e da
disciplina, mas rigorosamente fundados na impessoalidade racional (e sem negar
o direito civilizado ao contraditório), com foco na eficácia e eficiência dos
serviços prestados aos cidadãos (fiz alguns estágios e conheci polícias
altamente hierarquizadas do primeiro mundo, onde o direito a divergir nunca
ameaçou e nem desestabilizou ninguém – esta é a diferença quando a democracia é
mais do que apenas um discurso) ;
e) Desquartelização e formação de “malhas” de atuação
junto às comunidades (priorização da filosofia e do modus operandi de
polícia de proximidade – obviamente, sem negar as demais modalidades de
policiamento mas transversalizando-as nessa lógica);
f) Exclusão absoluta do caráter de “forças auxiliares”
do Exército;
g) Carreira única meritocrática (formações,
concursamentos internos, tempo de serviço com boa ficha, titulações acadêmicas,
experiências técnicas e de liderança etc);
h) Ciclo completo nos crimes ordinários (no sentido de
os mais comuns no dia-a-dia como, por exemplo, os crimes contra o patrimônio,
com assunção de cartório mínimo-básico próprio, desonerando a polícia civil);
i) Nomeação de comandos fundada em critérios técnicos
e de progressão de carreira, superando eventuais subjetividades personalísticas
e interesses de caráter político;
(Obs: Há diversas excelentes polícias no mundo que,
por sua ostensividade, optaram pela manutenção de estéticas militares mas que
se organizam com fundamentos em filosofias e ideologias civis. Em se tratando
de polícia, só pode ser assim).
Para as Polícias Civis
a) Superação do cartorialismo, livrando-se do foco
registrador-escrivista e da patética consumição inquisitorial (veja-se as
estatísticas sobre resultados de elucidações consequentes de crimes no Brasil);
b) Priorização da investigação profissional;
c) Para isso, libertação do inquérito policial,
repetitivo, caro, sem o direito democrático ao contraditório, extemporâneo,
inútil e reforçador da morosidade e da irracionalidade do sistema;
“Não é preciso extinguir nada. É preciso mudar a
lógica, a ideologia, a organização, desapegar-se dos ranços da ditadura, ainda
tão presentes, e ousar o novo.”
d) Deslocamento do foco da delegacia
(cartorial-burocrático) para a comunidade (investigativo-presencial-de
proximidade);
e) Deslocamento dos Delegados para o Poder Judiciário,
como Juízes de Instrução (trabalho que já fazem, de fato, mas sem empoderamento
e consequência). Isso renovaria as possibilidades de melhoria de um Judiciário
hoje inapetente para as demandas sociais, despreparado, inadequado e
desconstituído para a coleta direta de informações e provas e daria um sentido
ao, também, hoje deslocado trabalho (na polícia) do segmento dos delegados
(inclusive dos bons delegados, que se esforçam por melhores índices, em um
sistema desprovido de adequação para isso);
f) Transformação da PC em corpo técnico de
investigadores, inequivocamente policiais profissionais, liderados por
Comissários ascensionados meritocraticamente através de
estudos-formações-titulações (no tema da segurança pública, especificamente) e
nas lides investigativas;
g) Carreira única meritocrática;
h) Assunção dos crimes de maior complexidade, apenas
com o cartório mínimo indispensável aos mesmos, desonerando-se da inútil
enxurrada de registros da totalidade dos delitos;
i) Ciclo completo em relação à sua própria demanda.
***
Diante de tudo isso, muitos me perguntam se sou a
favor da extinção da PM e da PC. Não, não sou, em que pese respeitar pensadores
qualificados que assim se posicionam (é da democracia o direito de propor).
Explico: não sou a favor da extinção porque são
instituições centenárias, em que muitos erros foram cometidos, mas onde muitos
acertos também foram perpetrados por bons policiais civis e militares que,
muitas vezes, deram literalmente suas vidas. E há, nelas, também muito know
how, de grande valor, acumulado.
Sou um sujeito que, por convicção, nunca gosto de
começar do zero. É meu estilo pessoal (sempre agi assim), partir do que já foi
construído. E temo que uma desconstrução absoluta jogue o país em um caos ainda
maior. Li aqui pela internet um ditado, não me lembro de onde, que diz que
nunca se joga uma vasilha velha fora sem saber se a nova será capaz de conter a
água.
Mas defendo o que coloquei acima. Não é preciso
extinguir nada. É preciso mudar a lógica, a ideologia, a organização,
desapegar-se dos ranços da ditadura, ainda tão presentes, e ousar o novo. Ainda
assim, se por proximidade consensual, a população e seus governos quiserem
extinguir alguma instituição, bem, que seja. Mas não creio que se faça
necessário e nem que seja bom para o país. O que não se pode extinguir é a
polícia pois sem ela a democracia não sobreviveria. No mundo contemporâneo,
estaríamos rapidamente – ainda mais – nas mãos do crime organizado e articulado
em todos os níveis. A função da polícia é guarnecer o bom funcionamento das
instituições democráticas (ainda que nem sempre ela saiba fazer isso).
Proponho partir da cultura existente para uma
cultura totalmente nova. Minha proposta não é leniente e nem conciliadora no
mau sentido. Ela já me valeu muitos dissabores no passado, advindos do
conservadorismo de quem se preocupa muito com o próprio poder e pouco com a
população. Mas que poder? Aos poucos, na segurança pública, nos vamos afogando
e diluindo num mar de desmoralizações. Não há nenhum caminho que nos possa
salvar que não seja o caminho da transformação, radical (de raiz) mas
responsável.
Respeito os que discordam e não sou arrogante e nem
dono da verdade. Mas é nisso que creio, apaixonadamente (ainda que
racionalmente) e de coração puro. Um abraço muito fraterno e todos os
convergentes e divergentes. Que saibamos sempre, pelo menos, convergir no
desejo do melhor serviço.
Ricardo Balestreri
Ex-Secretário
Nacional de Segurança Pública. Diretor Executivo da empresa BBALESCON, Editoria
e Assessoria em Educação e Segurança Pública.
Fonte:
Abordagem Policial